quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

• O amor mais puro

Hoje gostaria de lembrar neste meu blog um poeta pouco conhecido da nossa nobre língua portuguesa.

Porque o vejo como um singular gentleman. Que passei a apreciar através da leitura do seu poema que reproduzirei em baixo, que consta que algum desdém literário terá provocado ao seu ilustre contemporâneo Camilo Castello Branco. Algo Incompreendidamente, direi eu...

Creio ter encontrado neste poema a expressão do amor mais puro que haver pode, dum amante extraordinário que de forma tão sublime idolatrava a beleza feminina. Com mal disfarçada vaidade desejaria me poder rever também nas suas galantes palavras.

Como se poderá bem adivinhar, os mesmos dizeres impregnados de paixão eu dedicaria a alguém muito especial no meu coração e na minha biografia por escrever.

Uns pézinhos

Cismo, cismo e não sei inda 
como tu, sendo tão linda 
e tão vaidosa de o ser, 
tens ai no chão pousados 
os teus pézinhos coitados!
aí como uns pés quaisquer!...

Eu não sei, não compreendo, 
quando te vejo correndo, 
mesmo que vás devagar, 
como uns pés tão pequeninos, 
tão delicados, tão finos, 
assim te podem levar!

Faz-me pena, coitaditos! 
tão galantes, tão bonitos, 
vê-los assim pelo pó!... 
Muita pena!... ainda ao menos 
se não fossem tão pequenos... 
mas assim faz mesmo dó!...

Ainda se toda a estrada 
te fosse ao menos juncada 
de rosmaninho e alecrim, 
como a santa da capela 
quando sai no andor, mas ela 
nunca teve uns pés assim!...

Olha! às vezes endoideço 
quando tos vejo, e apeteço 
duas semanas... um mês... 
dois meses... nem sei eu quanto, 
ser um sapato, contanto 
que tu me tragas nos pés!...

Às vezes, quando à tardinha 
tu vais cismando sozinha 
por sobre a relva ao de leve,
suspira cada folhita 
d’inveja a mais pequenita 
que o teu pézinho conteve!

E se páras distraída 
junto d’alva margarida, 
ou malmequer, ou bonina, 
faz gosto ver o jeitinho 
com que a flor torce o pézinho 
e sobre um dos teus s’inclina!

Que amor! que amor, ó meu Deus! 
e não é por serem teus
que os amo tanto, não é... 
Esse teu pé pequenino 
foi obra dalgum destino 
que eu tenha de amar um pé.

Mais ai! são tão desdenhosos! 
mostram-se assim descuidosos, 
mas eu conheço, eu bem sei... 
mil beijos, que me rejeitam, 
nem por tapete os aceitam, 
pobre de mim, que os sonhei!

E verás que dentro em pouco 
nem sei da cabeça, louco 
por ele... e seus desdéns!... 
Que tu também, coitaditos! 
tens uns pés tão pequenitos 
que por um triz que os não tens.

Esconde-me esses traidores, 
esconde-mos. Sedutores!... 
nem são pés, são um feitiço!... 
Esconde-me esses ingratos, 
nem as pontas dos sapatos 
quero ver-lhes, antes isso.

Que hei-de eu fazer, quando os vejo, 
a tanto faminto beijo
que tos quisera calçar? 
que nem os peixes no rio 
se juntam tanto a fio 
na veia d’água a brincar?

S’inda fosse a tua meia 
destes peixes rede cheia 
quando a fosses vestir, 
e em cada malha embrulhado 
ficasse bem emalhado 
ao menos um sem cair!

Ou, ao menos, se as pedrinhas 
onde os pões quando caminhas 
fossem todos beijos meus, 
que, nem indo a pé descalço, 
pusesses um pé em falso... 
mas assim!... valha-me Deus!

Olha, a dizer-te a verdade, 
eu acho que é crueldade 
deixá-los ir pelo chão... 
Se queres, poupa-lhes passos, 
levo-te a ti num dos braços 
e eles ambos noutra mão.

Fernando Caldeira
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Fernando Caldeira nasceu no palácio da Borralha, em Águeda, a 7 de Novembro de 1841 e morreu, relativamente novo, em 2 de Abril de 1894. Foi o segundo filho do primeiro Visconde da Borralha, Francisco Caldeira Leitão Pinto de Albuquerque de Brito Moniz, par do reino, do Conselho de D. Maria II e moço fidalgo. Foi sua mãe a Sr.ª D. Inês de Vera Geraldes de Melo Sampaio e Bourbon.

Por tradição de família, Fernando Caldeira cursou Direito e foi bacharel pela Universidade de Coimbra em 1861. Revelador da personalidade do poeta é o testemunho do Dr. Mateus Pereira Pinto, médico da família e amigo íntimo:

“Conhecê-lo foi o mesmo que admirá-lo e ficar preso do irresistível poder de sedução que dele dimanava. Debaixo deste aspecto foi um conquistador. Verdadeira alma de poeta… (…) O seu olhar sonhador e apagado, indicava-nos que o seu espírito deixava o seu invólucro material para pairar nas regiões etéreas do belo, mas tinha também cintilações e fulgor, que revelava um cérebro potente e produtivo.”

Fernando Caldeira, além de poeta, foi sobretudo dramaturgo. Sendo que a sua primeira peça teatral, “O Sapatinho de Setim”, estreou no Teatro da Trindade em Lisboa, em 1876. Curioso, este título... Que me leva a comparar este vate a esse outro vulto bem mais cosmopolita que foi o gaulês Retif de la Bretonne.

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